Alexandre Sequeira

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Voo Cego

Voo cego, 2021.
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Sobre o artista

Artista visual. Desenvolve trabalhos que estabelecem relações entre fotografia e alteridade social, tendo participado Encontros de Fotografia, Seminários e Exposições no Brasil e exterior, podendo-se destacar “Une certaine amazonie” em Paris/França; Bienal Internacional de Fotografia de Liège/Bélgica; Exposição no Centro Cultural Engramme em Quebec/Canadá; X Bienal de Havana/Cuba; Paraty em Foco 2009; FotoFestPoa 2010 e 2011; Festival de Fotografia de Recife 2010; Simpósio e exposição “Brush with Light”, na Universidade de Arte Mídia e Design de NewPort no Reino Unido, Festival Internacional de Fotografia de Pingyao/China, exposição “Gigante pela própria natureza” em Valência na Espanha; “Contemporary Brazilian Printing” em New York/EUA; PhotoGoa 2018/India; Taipei Photo 2018 e Latin American Photography/ Taiwan; Terra Brasilis: les photographes contemporains brésiliens/Fança; “Segue-se ver o que quisesse” no Palácio das Artes em Belo Horizonte/MG/BR “Geração 00 – a nova fotografia brasileira;  Projeto Portfólio no Itaú Cultural em São Paulo/Brasil: e “Meu mundo Teu” no Museu de Arte do Rio – MAR/RJ. Tem obras no acervo do Museu da UFPa, Espaço Cultural Casa das 11 Janelas; Coleção Pirelli/MASP, Museu de Arte do Rio/MAR, Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul, Museu da Fotografia/CE, Coleção de Fotografia da Associação Brasileira de Arte Contemporânea/ABAC.


www.alexandresequeira.com

Tocar aquilo que as coisas são ou inventá-las? Poderíamos explicar muito bem o que pensamos de uma fotografia, ou mesmo de toda a fotografia, pela ênfase num desses caminhos. Aqui essa polarização falha: Alexandre Sequeira produz imagens que são também acontecimentos, porque crava e transforma a realidade sempre a partir de dentro, no ato mesmo de registrá-la. 

Ele sabe o quanto é estranha a presença de um fotógrafo num ambiente alheio, às vezes distante, e o que tem a trazer como trabalho não é outra coisa senão os desdobramentos dessa aproximação negociada. Suas imagens não são flagrantes, são cúmplices daquilo que mostra.  Seu trabalho é, portanto, artifício e construção. Mas é sem dúvida documento, não por um pretenso distanciamento, ao contrário, por aquilo que sua proximidade permite deixar impregnado na imagem.

Em Nazaré de Mocajuba (2005), ele vai à pequena vila de pescadores que leva esse mesmo nome. É acolhido pelos moradores, ouve histórias, faz e compartilha retratos, vê antigas imagens de família. Depois, acrescenta às fotografias outras camadas de identificação com essas pessoas: ele imprime os retratos em tecidos estampados que encontra nas casas: cortinas, toalhas de mesa, lençóis ou redes. Espécie de sudários que acolhem a forma daqueles que tantas vezes os tocaram. A primeira exposição acontece ali mesmo, com esses véus inseridos na paisagem ou nas casas, reencontrando os personagens retratados. São fotografias que aderem a uma pele escamada do próprio lugar, assim como as experiências vividas aderem ao corpo do artista.

Por isso, essas imagens chegam a nós envolvidas pelo gesto e pela voz do artista: pelas histórias sobre Mocajuba; ou sobre a interação que promove entre uma adolescente do bairro de Guamá e outro da ilha do Combu, nos arredores de Belém do Pará (Meu Mundo Teu, 2007); ou sobre a materialidade que emprestou às fantasias de um menino do interior de Minas Gerais (Entre a Lapinha da Serra e o Mata Capim, 2010). Quem já escutou alguma dessas histórias sabe como a palavra nos chega sempre embebida de acontecimento.

O modo como Alexandre Sequeira se implica nessas experiências faz com que cada trabalho concluído seja também uma perda. Ele nunca se retorna totalmente. Em Apenas uma questão de tempo, de 2008, é também seu corpo que vemos transformando-se em chão, coberto de terra, craquelado. Um corpo que acumula cicatrizes, que se desconstrói em cada lugar por onde passa e que morre um pouco a cada vez. A perda e a morte são inevitáveis. Mas o que rege suas narrativas é um tempo cíclico – como nos mitos – que insere na palavra uma nova dose de futuro. Cabe então pensar: o que os fragmentos de si abandonados pelo caminho seguem construindo? E, ainda, o quanto os vestígios de experiência que as imagens portam são capazes de transformar nossos olhares? Assim, esse túmulo que anuncia o desaparecimento do corpo do artista traduz-se novamente em terra fértil.

Se suas imagens – aquelas feitas de prata, de pixel, de fogo, de terra ou de palavra – constituem uma mitologia, elas têm também o poder de atualizar antigos mitos da imagem.

Uma lenda reproduzida por Nadar dizia que Balzac acreditava que as pessoas eram feitas de espectros sobrepostos em camadas, e que cada fotografia se apropriava de um deles. De quantas dessas peles somos feitos? Mesmo que sejam infinitas, a fotografia resultaria sempre num déficit de existência. Fantasia sábia que percebe a violência que pode haver no gesto de tomar uma imagem, e o quanto o sujeito pode se apagar na mesma operação que garante sua exposição. Sequeira não se priva de trazer consigo uma camada de realidade. Mas Balzac descobriria com ele outros espectros que a fotografia também cria e lança sobre aquele que é fotografado: assim como os panos de Mocajuba são restituídos às casas, algumas histórias são colhidas dos sujeitos e outras tantas são tecidas e devolvidas a eles pela imagem. Seus personagens se transformam, alguns deles crescem a olhos vistos diante da câmera.

Os olhares que se colocam diante das fotografias também se transformam. Porque as imagens queimam, como sugere Didi-Huberman. Na exposição, é na pele que sentimos o fogo que destrói um cemitério quilombola (Cerco à memória, 2008): violar a memória dessa comunidade, fragilizar as raízes que a ligam àquele lugar é a forma violenta que foi encontrada para expropriá-la de sua terra. Mas esse fogo que agora nos cerca adquire um duplo sentido: ele anuncia pela imagem tanto o risco de destruição quanto a persistência dessa memória.

A imagem arde. Ela arde pelo real do qual, num dado momento, ela se aproxima (como dizemos nos jogos de adivinhação, “está quente” quando “se está próximo do objeto escondido”). (…) Ela arde pela destruição, pelo incêndio que quase a pulveriza, do qual escapa e, portanto, do qual ainda é capaz de nos oferecer um arquivo e a imaginação possível. Ela arde pela centelha, isto é, pela possibilidade visual aberta por sua própria consumação: verdade preciosa mas passageira, porque tende a se apagar (como uma vela que nos ilumina mas que, queimando-se, destrói a si mesma). (…) Ela arde pela dor da qual provém e pela qual procura, quando alguém se permite o tempo de se ligar a ela.  Enfim, ela arde da memória, isto é, ela arde ainda, ainda que ela seja apenas cinza: um modo de dizer sua vocação essencial para a sobrevivência, apesar de tudo”. (Georges Didi-Huberman, L’image brûle, 2006)

Outra lenda, agora relatada por Gombrich, diz que Michelângelo demorava a começar uma escultura, porque precisava antes encontrar um bloco de mármore que contivesse a forma que buscava. De fato, ao criar, o Alexandre Sequeira parece às vezes apenas libertar a imagem que está contida nas coisas. Mas claro, o que chamamos de criação não é apenas descoberta, é expectativa, projeto, trabalho. A imagem que o artista liberta não está dada, é uma potência que só pode ser encontrada a partir do cultivo que promove. Nada do que vemos nessas imagens chegaria ao nosso olhar se não fosse por sua intervenção. Mas não há nada que ele nos mostre que já não pertencesse ao imaginário desses lugares.

A fotografia é como a armadilha para discos-voadores do menino de Lapinha da Serra: ela apanha uma imagem que, até então, só havia sido vista nos sonhos. E, se essa imagem latente orienta a direção dos olhares quando abertos, quem irá dizer que ela não é parte da realidade. É assim que a fotografia que inventa também toca profundamente o que as coisas são.

Ronaldo Entler