Vicente Cecim

Permanência
Permanência, 1976, 19’58″

Rumores
Rumores, 1979, 27’06’’

Sombras
Sombras, 1977, 19’39”
Sobre o artista
Descendente de brasileiros amazônicos e de libaneses e sardos emigrantes, Vicente Cecim nasceu e vive na Amazônia. Quando seu filho Franz — em memória de Kafka — foi assassinado, jovem, abrigou no seu o nome do filho e passou a escrever seus livros visíveis de Andara como Vicente Franz Cecim. Mas a concepção de Viagem a Andara oO livro invisível, livro não escrito, puramente Imaginal, se atribui, miticamente, a Cecim da AmazoOnia, em gesto de doação de toda a sua obra àquela que chama de a Floresta Sagrada. Desde 1979 Cecim gera Viagem a Andara oO livro invisível, o não-livro que escreve com tinta invisível. E seus livros visíveis, escritos, emergem dessa literatura fantasma como emissões da física e metafísica Andara, trans-figuração da Amazônia em região-metáfora da vida. Em 1983 seu Manifesto Curau/Flafrados em delito contra a noite, lançado durante a primeira SBPC, em Belém, foi uma reflexão e um apelo à insurreição poética e política da Amazônia, o Imaginário da região e a invenção de Andara. Denúncia contra o crime de não sonhar. Menção especial no Prêmio Internacional Plural, México, em 1981, com Os jardins e a noite – sob o título A Noite do Curau – revelação de autor em 1980 por Os animais da terra, e, em 1988, Grande Prêmio da Crítica, dois prêmios da APCA— Associação Paulista de Críticos de Artes, o segundo pelos sete primeiros livros de Andara, reunidos em Viagem a Andara, nessa década também dado a Hilda Hilst, Cora Coralina, Mario Quintana e, na seguinte, a Manoel de Barros. Transcriados, foram relançados em A asa e a serpente e Terra da sombra e do não, em 2004. Em 1994, quatro novos livros em Silencioso como o Paraíso, avançaram na conversão da sua literatura em pura escritura. Leo Gilson Ribeiro disse ser “um dos mais perfeitos livros surgidos no Brasil nos últimos dez anos”. Passando a publicar seus novos livros em Portugal, em 2001, Ó Serdespanto, livro duplo reeditado pela Bertrand Brasil em 2006, foi apontado pela crítica portuguesa no jornal Público como o segundo melhor do ano e Cecim saudado por Eduardo Prado Coelho como “Uma revelação extraordinária!” O lançamento em Portugal de K O escuro da semente, em 2005, inaugurou nova fase em sua linguagem, a Iconescritura, mescla de palavras, silêncio de páginas em branco e imagens, prolongada em 2008 com oÓ: Desnutrir a pedra e, em 2014, com Breve é a febre da terra, que recebeu o Prêmio de Ro-mance Haroldo Maranhão da Casa das Artes. Em 2015 publicou Fonte dos que dormem, pela editora Córrego, e em 2016 saiu a edição brasileira de K O escuro da semente, pela editora LetraSelvagem, ambas de São Paulo — sendo K apontado como um dos quatro finalistas ao Prêmio Livro de Poesia do Ano pela APCA. Este volume revela os inéditos e mais recentes livros visíveis de Andara: oO Círculo suas Rendas de Fogo, Coisas escuras procurando a luz com dedos finos cheios de ervas e também Oniá — reunidos no conjunto Oniá um Lugar cintilante. Mas oculta Os animais da terra, de 1980, Breve é a febre da terra, e contém apenas fragmentos de oÓ: Desnutrir a pedra, de 2008, pelo limite de páginas desta seleção. Cineasta, Cecim é o criador dos filmes KinemAndara. Jornalista profissional, se iniciou na profissão em 1967. Em 2019 foi lançado na França, bilíngue, seu livro Os jardins e a noite/Les jardins et la nuit, pelas editoras Hedra e No Livro.
Antes de iniciar sua obra literária, Cecim realizou em super-8 nos anos 70 o ciclo de filmes kinemAndara, agora exibidos em versão digital. E suas reflexões sobre o cinema evocam a permanente tensão de sua escrita entre o visível e o invisível. Voltou a filmar quase trinta anos depois, em 2007, para fazer com seu filho Bruno Cecim (fotógrafo e cineasta) o filme, Marráa Yaí Makúma – Aquele que dorme sem sono, disponível no You Tube e no Vimeo entre outros vídeos . Entre seus filmes mais recentes constam: A Lua é o Sol, Fonte dos que dormem e K+afka. O emprego da Imagem é também uma característica da sua obra literária. Sob a forma de ícones, antes silenciosos e imóveis: Iconocanto, mesclando som e movimento virtuais publica o poema Não é a água (O) que se bebe. E o último trabalho áudiovisual A Cicatriz Perfeita em 2021.
É indispensável homenagear Vicente Cecim, falecido em 2021, nesta História da Videoarte da Amazônia / Pará. Embora Cecim tenha filmado em película numa câmera super-8 tão usada por artistas do Brasil em resistência à ditadura militar de 64, a transcrição em vídeo facilitou esta inclusão com três obras capitais de seu cinema experimental (o KinemAndara), veio poético e dimensão filosófica: Permanência (1976), Sombras (1977) e Rumores (1979).
Embora há quem queira ver construção surrealista na filmografia de Cencim, Permanência (1976) é filme de densidade psíquica num universo que por vezes se aproxima de Clarice Lispector e sua busca de uma Presença do Outro e da insuficiência do eu. Esse jogo de ausências já anunciava que o cinema sem script de Cencim se constituía do acaso e do desenrolar da hora, como um fluxo espontâneo dos afetos e da sociabilidade. Permanência (1976) aborda o insolúvel vazio essencial constitutivo do sujeito.
Já se disse que o filme Sombras (1977) é uma parábola sobre o exílio da velhice, reflexão sobre o tempo e a solidão nos asilos. No entanto, para além de uma reflexão sociológica da velhice e da distribuição biopolítica dos corpos nas instituições de refúgio, Sombras é do campo da filosofia da existência, da irrecorrível passagem do tempo e previsão da morte. Tempo fugit. Essa é a inquietação mór que a obra de Cecim nos faz confrontar: a incompreensibilidade da morte e do devir para o fim.
Vidente Cecim quis que seu cinema fosse um lugar da solidão, do estar consigo mesmo na errância da existência. Silêncio e questionamento da necessidade de escuta atravessam o espectador no limite do indizível. Rumores (1979) é esse filme, no qual o autor teve a sensibilidade alimentada por Limite (1931) de Mário Peixoto, que havia sido recuperado pela Funarte, e por O Evangelho Segundo Mateus (1964) de Pier Paolo Pasolini.
Em seus experimentos imagéticos, Vicente Cecim operou com o sentimento do vazio do mundo que está na psicanálise de Lacan, na literatura de Clarice Lispector e na obra de Lygia Clark e Mira Schendel; com as questões heideggerianas sobre o ser e o tempo e com os limites do dizível no limiar da metafísica, como discutiu Wittgenstein. O visível pede uma voz. Em Vicente Cecim é o cinema que lhe pede a literatura, não o oposto. Antes de refletir criticamente sobre a Amazônia através do discurso literário, ele precisou pensar o sujeito amazônico na metrópole. Por tudo isso, em conclusão, há que se pensar a obra de Vicente Cecim como da ordem do cinema do inapelável na existência humana.